sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Romance? Ensaio? Conto? Fábula?

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"Um motorista, parado no sinal, subitamente se descobre cego. É o primeiro caso de uma ‘treva branca’ que logo se espalha incontrolavelmente. Resguardados em quarentena, os cegos vão se descobrir reduzidos à essência humana, numa verdadeira viagem às trevas”.
O que você faria se subitamente se descobrisse cego? E se isso acontecesse no meio da rua, entre dezenas e dezenas de pessoas desconhecidas passando ao seu redor e sem que você tivesse uma plena consciência das ruas, dos automóveis, das calçadas ou de qualquer obstáculo que poderia aparecer ao longo do seu caminho? E o pior de tudo é imaginar que tudo teria acontecido sem mais nem menos, ou seja, sem que qualquer sintoma anterior tivesse lhe alertado da possibilidade da cegueira...


Essa é a premissa inicial de um livro que se intitula ensaio, que é sem dúvida um grande romance e que tem toda uma aparência de fábula moderna. Não apenas um conto do qual extraímos lições, a partir do qual se estabelece uma moral, mas uma história que nos deixa aturdidos diante do rumo tomado na vida dos personagens ao longo do qual a trama se desenrola.


O mais interessante é que não há nomes. Nenhum dos protagonistas é identificado como sendo João, Maria, José, Pedro, Ana ou qualquer nome regularmente utilizado em países de língua portuguesa. Cada um desses homens e mulheres que encabeçam a história é chamado peculiarmente a partir de sua ocupação, do parentesco em relação a outro personagem da história ou ainda a partir de alcunhas relacionadas aos atos por eles praticados ao longo dos capítulos.
“Fez-se um silêncio, e ele disse, Estou cego, não te vejo. A mulher ralhou, Deixa-te de brincadeiras estúpidas, há coisas com que não devemos brincar, Quem me dera que fosse uma brincadeira, a verdade é que estou mesmo cego, não vejo nada, Por favor, não me assustes, olha para mim, aqui, estou aqui, a luz está acesa, Sei que aí estás, ouço-te, toco-te, calculo que tenhas acendido a luz, mas eu estou cego. Ela começou a chorar, agarrou-se a ele, Não é verdade, dize-me que não é verdade”.
Mestre Saramago se superou mais uma vez. Resolveu colocar seus leitores para refletir com o macabro lado da humanidade despertado pelas condições desumanas com que são tratados os cegos. Pois se a princípio chegamos a pensar em casos isolados, a tal cegueira branca se estende a milhares e milhares de pessoas, num impensado caso de epidemia de cegueira.


Os olhos incapazes de executar aquilo que deles se espera castiga as pessoas com tombos, encontrões, acidentes das mais diversas naturezas, o medo e a intolerância dos demais em relação aos pobre-coitados afetados por essa moléstia desconhecida.


Acuados e sem qualquer socorro por parte dos médicos (a tal cegueira branca é caso totalmente desconhecido, nunca antes registrados nos anais da medicina mundial), os cegos são colocados em galpões, manicômios, prédios abandonados ou qualquer instalação onde possam ficar totalmente isolados do contato com pessoas saudáveis, ainda não afetadas pela doença.
“Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”, disse o escritor José Saramago, por ocasião da apresentação pública do seu romance “Ensaio sobre a Cegueira”.
Para garantir o pleno isolamento dos infectados nessas áreas marginais, o governo do país estabelece postos de guarda monitorados pelas forças armadas. Os soldados têm autorização para atirar se notarem qualquer movimento suspeito por parte dos cegos. Nem mesmo as requisições básicas podem ser atendidas, nenhuma pessoa capaz de enxergar se atreve a entrar em locais onde os doentes estão vivendo.


Sem qualquer tipo de auxílio, a organização nos recintos onde vivem grupos cada vez maiores de cegos é precária e tornasse verdadeiramente caótica a cada novo dia (em virtude do advento das novas levas de doentes). A Comida colocada a poucos metros dos portões de entrada dos manicômios que abrigam esses pobres-diabos é insuficiente para atender a fome de todos.


Para piorar a situação há entre os cegos alguns espertalhões que se aproveitando da cegueira de todos, surrupiam para seu próprio consumo uma parte daquilo que é legado ao grupo para consumo particular. A solidariedade também é artigo em falta nos arredores dos deficientes visuais da história de Saramago.


Sem qualquer tipo de expectativa quanto ao futuro, a maioria dos ceguetas passa o dia deitado nas camas e colchões disponíveis para suas acomodações. Sem qualquer tipo de prática na vida de cego, as pessoas encarceradas nessa prisão provisória da claridade excessiva e dos muros dos locais onde passaram a viver não conseguem se deslocar com agilidade de um lado para outro, deixam de urinar ou defecar nos locais apropriados, tornam o ar ao seu redor totalmente putrefato, não tomam banho regularmente, deixam de lavar as mãos ou de se barbear...


Passa a imperar entre eles uma vida totalmente desregrada, de muita sujeira, onde os mais fortes passam a impor sua voz, onde a razão, a lógica, a sensibilidade e a noção de direitos foi totalmente implodida em favor da sobrevivência.


Homens e mulheres abrem mão de conquistas que foram almejadas pela humanidade ao longo de séculos. Ninguém se atreve a contestar a lei da selva que se estabelece. Os poucos que ousam levantar sua voz são silenciados com brutalidade, seja pelos que vivem fora dos limites desse mundo ou ainda por aqueles que entram nesse mundo armados de ferramentas que os colocam em vantagem nas disputas ali travadas.


Chegamos ao limiar da insanidade e próximos do limbo quando o autoritarismo se impõe como forma de governo dentro do manicômio. Instala-se não somente a ditadura dos mais fortes, mas também a ordem passa a parecer muito próxima a do próprio local onde estão muitas dessas pessoas, estamos cada vez mais dentro do universo da loucura, estabelecidos com os cegos num verdadeiro hospício.


Romance? Ensaio? Conto? Fábula?


Saramago conseguiu unir elementos das quatro possibilidades literárias mencionadas anteriormente e criar uma nova linhagem de textos para os escritores. Difícil de se imaginar que outros venham a se aventurar por essa terra de pioneiros criada pelo grande escritor português (na qual com certeza podemos colocar também o colombiano Gabriel Garcia Marques e seu fabuloso “Cem Anos de Solidão”).


Como fábula macabra, o livro de Saramago nos coloca questionamentos muito interessantes sobre ética, humanidade, sobrevivência, altruísmo, valentia e solidariedade. Desmistifica nossa aura orgulhosa de realizadores invencíveis e nos coloca em pé de igualdade com os piores vermes que habitam a face da terra. É justamente nesse ponto que deixa de ser soturno, assustador e apavorante para se tornar uma fábula que nos coloca outras possibilidades que não apenas aquelas do medo, da insegurança e do desespero. Há espaço para a luz que orienta, para o auxílio que protege, para o amor que humaniza...


“Ensaio sobre a Cegueira” é literatura de altíssimo nível. Recomendada para leitores maduros e para todos aqueles que se interessam por histórias que levem a divagações, que proporcionem sustos, que nos coloquem próximos aos personagens e nos façam imaginar o que faríamos se estivéssemos em seus respectivos lugares. É livro para ler do começo ao fim sem pestanejar. Não percam!"


Por João Luís de Almeida Machado

http://www.escolhendoapilulavermelha.com.br/2010/10/um-mundo-sem-professores.html?spref=tw

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